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Estado de Atividade Funcional

Entrevista realizada
no contexto da exposição,
EAF - Estado de Atividade Funcional, individual da artista Tina Velho no Centro Cultural TELEMAR,
Rio de Janeiro 30/08/2005

 

Paula Perissinoto: Como ocorreu a transição da prática da gravura para a produção digital?

Tina Velho: Por volta de 1994-95, fui trabalhar em um estúdio de comunicação visual totalmente digital. Nessa época, as pessoas estavam começando a utilizar o computador na área gráfica e este estúdio resolveu montar uma estrutura interna completa de produção digital, trabalhando com design, fotolito digital e imagem. Fui contratada para ser a responsável pela área de imagem digital. Comecei a usar um Macintosh, mas mantive meu atelier de litografia em Niterói. Com o tempo, passei a trabalhar em horário integral e acabou se tornando inviável manter o atelier porque o estúdio era no Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Mas, como o Parque Laje ficava próximo e também no Jardim Botânico, nas horas vagas ia até lá e trabalhava em minhas gravuras.
Foi nesse momento que comecei a perceber a afinidade entre a área digital e a litografia. Trabalhava digitalmente com imagens que seriam impressas no processo off-set e, para isso, era necessário gerar fotolitos – um para cada canal de cor da imagem. Mesmo sendo um processo digital, o princípio era o mesmo da litografia: composição da imagem através da separação de cores. Na verdade, o processo de impressão off-set é baseado no processo da litografia, uma espécie de sofisticação do processo artesanal.

Era tudo muito parecido. Fui percebendo as possibilidades e comecei a fazer minhas imagens. Às vezes, as criava fora do computador e depois as “scaneava” para obter o formato digital. Mas era frustrante porque elas ficavam confinadas no meu computador. Na época, não havia impressora colorida disponível, imprimir fora era caro e a única forma de se transportar arquivos eram os disquetes, que tinham capacidade reduzida. Cada imagem necessitava de muitos disquetes. Tudo era muito difícil naquela época.
Então, desenvolvi um processo. Imprimia a imagem fazendo a separação de cores em uma impressora laser, ou seja, cada cor numa folha separada. Exatamente o mesmo processo de separação usado na gravura, onde cada pedra é feita separadamente e depois se imprime uma cor sobre a outra para obter o resultado final.
Simplesmente fiz esta passagem: tirava as impressões em preto-e-branco, levava para o Parque Lage e realizava na pedra, o que se faz no processo do off-set. Foi assim que comecei a trabalhar com imagem digital.

Paula: Quais elementos da linguagem digital que podem ser aplicados na litografia?
TV: Muitas vezes, começava desenhando, “scaneava” essa imagem e levava para o computador. Nela, trabalhava coisas que só o aspecto digital poderia me oferecer e, depois de imprimir com separação de cor, levava o resultado para a pedra e interferia na imagem com aquilo que só a litografia poderia me dar como, por exemplo, o tuche (que é como uma aquarela que se faz direto na pedra). A separação de cores na pedra, por exemplo, é uma coisa bem mais difícil de se obter do que no processo digital.

Paula: Durante quanto tempo você está desenvolvendo essa relação digital com a imagem?
Tina: Tudo foi uma passagem. Na medida em que fui sentindo necessidade de outros elementos e aprendendo novas técnicas, fui deixando de usar os métodos anteriores. Na verdade, quando levava o resultado do computador para a litografia, era mais por falta de recurso do que propriamente por apreço à técnica. Uma impressão colorida, naquela época, era muito cara. Eu usava a impressora do estúdio — onde só havia uma — e que, naturalmente, não estava disponível a qualquer hora para fazer meu trabalho.
Todas essas dificuldades foram fazendo com que eu descobrisse outros caminhos. Depois, com o tempo, as coisas foram ficando mais fáceis. Tive acesso a outros recursos e aí já não usava mais tanto a litografia – a não ser quando desejava um efeito que só ela poderia me dar.

Paula: Mas hoje você ainda usa a lito?
Tina: Muito pouco. Quando quero alguma coisa em papel, tenho uma impressora para formato A3 e imprimo em papel de gravura ou papel Fabriano com 300 gramas, por exemplo. A mesma coisa que faria na litografia, faço no computador: imprimo e, depois se for necessário, uso a aquarela ou desenho por cima. Geralmente, faço isso, mas atualmente, tenho feito poucas litografias.

Paula: Em seu projeto Hemapoético houve a inserção de som e movimento, o uso da linguagem de vídeo. Em que momento você sentiu necessidade de inserir esses elementos na sua produção?
Tina: Em 1998, já começava a usar o movimento em alguns trabalhos... sempre muito orgânico e sempre falando de vida. A necessidade de usar som e movimento surgiu exatamente da possibilidade de mostrar este aspecto de vida.
No Pixel-per-pixel, comecei a fazer pequenos vídeos, mostrando algum movimento de pulsação. Antes dos Hemapoéticos, fiz Deslocamentos – uma exposição com desenhos – onde já trabalhava essas formas orgânicas. Enxergava nelas movimento, via formas se mexendo e isso me induziu a usar som e movimento no trabalho, mas não havia o objetivo de usar a linguagem de vídeo. Simplesmente desejava ver a forma em movimento.
Fui fazer um curso de desenho animado, começando da forma tradicional, desenhando em mesa de luz. “Scaneava” esses desenhos e criava a animação baseada no movimento que a primeira imagem induzia, ou seja, continuando uma idéia que tinha surgido no primeiro desenho.
Na verdade, o movimento não começou com a linguagem de vídeo. Começou com o desenho animado.

Paula: E você usou imagens que fazia em litografia para produzir essas animações?
Tina: Não, as animações foram produzidas a partir de desenho mesmo. Algumas vezes, “scaneava” uma pedra, a própria textura da pedra ou formas mais orgânicas, que depois misturava no computador.

Paula: Gostaria que você falasse um pouco sobre como foi sua experiência em desenvolver os seguintes trabalhos: Labirinto, Morto-vivo e
Rede II.  Qual o processo de execução de cada um e a relação entre eles?
Tina: Esses trabalhos não têm muita relação um com o outro. Eles foram agrupados no meu website porque são todos interativos.
O Labirinto é da época do Pixel-per-pixel, minha primeira exposição com trabalhos em técnica digital – em 1998 no Museu da República. Ele remete a uma coisa que me incomodava muito na Internet: a navegação link sobre link. Vamos seguindo esses links, mas acabamos sempre meio perdidos sem chegar a nenhum lugar, sempre passando por muitos caminhos. Não existe fim. O Labirinto foi uma brincadeira em torno disso.
Os Rede I e II são imagens que só se movimentam se houver uma interação com o navegador, que poderá escolher a velocidade e o curso do movimento. Rede I já não está mais disponível da Internet.
E, finalmente, Morto-vivo, que foi – no processo de desenvolvimento do Estado de Atividade Funcional (EAF) – a primeira descoberta do movimento. Nele, mexe-se simplesmente em três imagens onde as pessoas acabam descobrindo um movimento que está presente no seu dia-a-dia, o qual elas nunca repararam: sua pulsação. E que significa estar vivo.

Paula: É você quem produz os trabalhos em HTML?
Tina: Sim. No estúdio de comunicação visual onde trabalhei, além de lidar com imagem, eu também fazia alguns trabalhos de design. Assim que a Internet comercial começou a funcionar no Brasil, o estúdio passou também a fazer design de web. Fui então aprendendo HTML, que naquela época tinha que ser todo escrito e exigia noção de linguagem e programação.
Computador, imagem digital, web, tudo é dinâmico, lhe instiga a querer interagir. Então, tudo na verdade foi uma busca, um caminho. Você dá o primeiro passo, depois outro, uma descoberta lhe leva à outra.
Eu mesma executo todas as partes do meu trabalho. À medida que vou precisando de alguma técnica ou recurso, vou pesquisando, aprendendo. Por exemplo, sei alguma coisa de Flash (um programa usado para fazer animação com interatividade), mas aprendi um pouco mais desenvolvendo o Jogo da Memória, um dos trabalhos pertencentes ao EAF. Comecei tentando montar tudo em HTML, usando
Gif-animado para os movimentos, mas ficou muito pesado. Na procura de uma solução que tornasse mais leve e ágil a manipulação das “peças” do Jogo da Memória, percebi que o melhor caminho seria trabalhar com Flash.
Então, meu percurso pela técnica é esse:
à medida que vou precisando, vou pesquisando soluções e aprendendo.

Paula: Como você entende a rede (Internet) em relação à produção estética de hoje? Qual o papel que ela tem?
Tina: Vejo várias faces... É aquilo que falei antes: a interatividade é uma coisa que você não pode ignorar na Internet. A globalização: a possibilidade de você interagir e se comunicar com pessoas de várias partes do mundo em tempo real. Isso é uma coisa que me fascina, fico impressionada com as possibilidades. E também questões como a troca, a disponibilidade, a navegação e uma relação quase orgânica com a imagem são aspectos importantes da Internet. O que antes era somente comunicação, hoje é comutação.

Paula: O que você entende por interatividade?
Tina: Me refiro à relação estabelecida com o receptor, possibilitando e produzindo imersão, navegação e a transformação imediata a um simples apertar de mouses. Esta interatividade é um processo muito novo para todos e, apesar de trabalhar com linguagem digital há algum tempo, ainda estou engatinhando neste aspecto.

Paula: Você não considera trabalhar com outras pessoas?  Alguém que domine mais essa nova linguagem e, dessa forma, poder realizar trabalhos em co-autoria?
Tina: Gostaria muito de trabalhar com outras pessoas. Ainda não apareceu essa oportunidade. Para o Jogo da Memória, fui atrás de alguém que me orientasse no Flash. Mas, quanto ao resto, fui quebrando a cabeça.
Todo esse trabalho do EAF foi feito com uma câmera digital de foto e vídeo com lente macro. Foram coisas que, trabalhando no atelier, fui descobrindo: a pulsação, as lagartas, vendo a conexão de todos esses movimentos. Fui constatando a ligação entre os movimentos e registrando através da câmera digital. Depois, levei para o After Effects (um programa de composição de imagem) para trabalhar a parte estética, a parte gráfica. E nisso vejo um pouco de gravura.

Paula: Percebi que você montou o trabalho Jogo da Memória de uma forma estática. As coisas não se transformam dentro dele. Quando clico numa janela escura, surge uma imagem. Se clicar novamente, o sistema não embaralha as lagartas. Por quê?
Tina: É intencional. Uma coisa que acho engraçada no Jogo da Memória é esse movimento que nunca acaba. É uma memória recente. De tanto ela se repetir, você perde a lembrança daquilo: não sabe onde começou e nem onde terminou. Neste trabalho, quis pegar as imagens quase paradas – com poucos movimentos – para fazer um looping quase perfeito, em que você não percebe onde ele está começando ou acabando. Em todos os trabalhos dessa exposição, tentei adotar esse critério.

Paula: Existe alguma dificuldade técnica em fazer o jogo embaralhar ou isso em nenhum momento passou pela sua cabeça?
Tina: Não, até pensei nisso: em embaralhar as imagens. Cheguei a buscar a solução técnica para isso, mas depois percebi que todo o esforço técnico não iria acrescentar nada ao meu objetivo. Não queria criar apenas um jogo da memória convencional e sim uma brincadeira estética, onde a pessoa poderia abrir qualquer número de imagens, a qualquer momento, e mantê-las abertas, construindo assim uma composição estética, sem regras – uma coisa que me incomoda muito.

Paula: Como surgiu o Estado de Atividade Funcional (EAF)?
Tina: Surgiu da busca deste movimento que define nossa relação com o mundo. O universo – desde as estrelas até os átomos – é, por natureza, maleabilidade e mobilidade. O Estado de Atividade Funcional obedece, portanto, a esta configuração. A corrente sanguínea – este fluxo incessante – é a vida que se move dentro do corpo e que, raramente, percebemos. É a igualdade de todos os seres vivos e a fronteira entre a vida e a morte.

Paula: Por que você usou a imagem das lagartas?
Tina: Lagartas e minhocas remetem à terra, princípio da vida e transformação. As lagartas apareceram com freqüência em meu atelier e as observei durante muito tempo. Percebi o fluxo de pulsação que existe em seus corpos e sua estreita ligação com o princípio da vida e a capacidade de transformação. Isso me levou a incorporá-las ao projeto.

Paula: A lagarta tem um primeiro estágio de vida em que, depois, se transforma num casulo e que, por sua vez, se transforma numa borboleta. São momentos de vida diferentes pelos quais ela passa.
Tina: Sim, são as transformações e as evoluções que nós mesmos passamos. A vida está em constante evolução. Vai se adequando ao que vai encontrando pelo caminho.

Paula: Como você se sente dentro desse cenário que transita entre as duas propostas: o uso das mãos e o uso da máquina?
Tina: Vejo a máquina como uma ferramenta. Posso usar um buril ou outra ferramenta qualquer para realizar um trabalho. A máquina é mais um complemento, não te deixa, necessariamente, distante do trabalho manual.
Sempre achei que uma coisa completava a outra. Posso usar o computador naquilo que só a máquina pode me dar e, na parte manual propriamente dita, fazer coisas que só as minhas mãos podem fazer. Uma técnica pode complementar a outra.

Paula: Qual vai ser a tendência da sua produção atual? Que caminho sua produção vai seguir?
Tina: Com o EAF, me descobri também fazendo vídeo-arte. Comecei a entrar numa linguagem que surgiu no desenho e migrou para o real. Ainda não sei onde isso vai dar, mas tenho certeza de qu e o caminho continua em direção ao vídeo.
Tenho dois objetivos: desenvolver mais a interatividade na rede e também continuar desenvolvendo trabalhos em vídeo.

Paula: Considerando que vídeo-arte era uma tendência da década de 70, você pretende desenvolver algo em vídeo que seja mais contemporâneo como, por exemplo, o vídeo interativo?
Tina: Sim, o trabalho Morto-vivo já aponta para esse caminho. Além disto, um dos trabalhos que vou apresentar nesta exposição é um vídeo interativo. São duas projeções sobrepostas: uma a projeção do próprio vídeo e a outra de uma micro-camêra de vídeo. Permitindo, assim, a interatividade com a obra.

Paula: Dentro do que pude ver, o EAF é muito mais uma representação da vida do que uma narrativa ou um roteiro sobre a vida.
Tina: O que capta minha atenção é o movimento. Certa vez em um filme, ouvi uma frase ótima de um personagem: “gosto de ficar em frente à televisão vendo as imagens passando”. É isso mesmo, as pessoas ficam ali vendo as imagens passando, mas não prestam atenção à narrativa. Esta é a essência do EAF: ele está apenas acontecendo, não existe roteiro.
Não me vejo produzindo nada que tenha narrativa, uma representação com começo meio e fim. Gosto de ver imagens em movimento e deixar que elas falem por si.

Paula: Você acredita que a linguagem digital consegue dar mais vida à produção artística?
Tina: Como artista, me sinto profundamente instigada a experimentar. A linguagem digital oferece milhões de possibilidades de expressão a serem exploradas. Faço sempre a comparação entre a linguagem digital e o início da litografia, abrindo um novo universo para os artistas da época.
O artista é um ser curioso por natureza. Acredito que todo artista contemporâneo deva se sentir instigado a usar algum recurso digital e acho estranho aqueles que negam ou rejeitam a existência da linguagem digital. Penso em Toulouse Lautrec diante de uma pedra de litografia, tirando proveito do avanço da tecnologia da época.
Na verdade, o artista que rejeita esta linguagem, tem um pouco de medo de descobrir ou teme as novas técnicas.
De minha parte, estou sempre à procura de aprender coisas novas, fazer novas experiências em linguagem digital. Mas nem por isso, vou parar de desenhar ou usar as mãos. Uma coisa vai continuar complementando a outra.

2010 - present

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